Cento e trinta e dois anos à margem

No dia 13 de maio de 1888, há exatos cento e trinta e dois anos, foi aprovada no Senado brasileiro a Lei Áurea, lei esta sancionada pela Princesa Dona Isabel, filha de Dom Pedro II, concedendo, a todos os escravos, liberdade e, assim, abolindo a escravidão.

Desde o começo da nossa educação nos é ensinado que uma princesa, branca e bondosa resolveu, por mera liberalidade, libertar todos os escravos negros do Brasil, de modo que, desde aquele momento, as senzalas se abriram e todos saíram e foram felizes para sempre. Ocorre que não foi bem assim que aconteceu.

O Brasil foi o último país da América a abolir a escravidão, bem como foi um dos lugares com mais negros escravizados em todo o mundo. Vinte anos antes, os Estados Unidos da América já haviam extinguido a escravidão e, em 1850, através da lei Eusébio de Queirós, o tráfico negreiro entre a África e a América já não era mais permitido.

Durante o período em que o Brasil continuava a escravizar o povo negro, inúmeras leis[1] foram sendo promulgadas para mitigar a realidade do país, uma realidade de um país governado por uma elite branca que se julgava e, ainda se julga, superior.

Diante da ineficiência em mascarar a real crise imperial acontecendo no país, marcada por inúmeras rebeliões e fugas de escravos para quilombos, a elite, preocupada que seu futuro estivesse predestinado a seguir o rumo que a Revolução do Haiti[2], e atendendo às pressões internacionais que já contavam com a Revolução industrial, pautada na exploração do trabalho livre, viu na abolição a resposta. Os resultados, no entanto, foram totalmente contrários às expectativas.

A lei foi sancionada sem o menor resquício de preocupação com a reparação histórica, ao contrário do que foi realizado em outros países. Assim, os negros, após 300 (trezentos) anos de escravidão, em país diverso do seu de origem, cujo patrimônio e riqueza foi pautada em cima do trabalho escravo, foram, simplesmente, libertados – se é que podemos chamar isto de liberdade – e jogados à própria sorte, sem alimentos, moradia, emprego ou perspectiva de vida.

Desta forma, com a celebração da ruína das senzalas, nasceu, também, a luta pela vida nas favelas.

Fato é que a celebração pela abolição da escravatura pode ser facilmente confundida com uma grande incongruência da sociedade que condena, diariamente, todos os jovens negros e pobres do nosso país. São pessoas que, em razão das circunstâncias, discriminações sociais e raciais e ausência de oportunidades passam a viver em situação de conflito com a lei, através de uma conduta desviantes tomada em razão de uma criação social que praticamente impõe a elas o rótulo de criminosos.

Assim, aqueles cuja imensurável bondade branca permitiu que pudessem ser livres são os mesmos que se encontram, 132 (cento e trinta e dois) anos após a promulgação da lei abolicionista, posicionados à margem da sociedade, dominados pelo sistema e pelas poucas opções de sobrevivência e subsistência. Negros, pobres e extremamente distantes da aclamada burguesia vivem em uma sociedade que os faz ser submetidos a um sistema de correção que, praticamente, predestina seu futuro.

A construção de valores e atitudes dentro de uma sociedade se dá a partir do sentimento de pertencimento àquele local e, ao sentir-se pertencente, incluso, inserido, o ser humano compartilha desses ideais e os reproduz. Aristóteles dizia em seu livro “Política”, que o homem não poderia não viver em cidade alguma, já que estava fadado a ser um animal social/político (ARISTÓTELES, 1985). Assim, tomando como base os grupos de homens e mulheres, meninos e meninas negros que vivem nas comunidades atuais, observa-se que estes, desde sua liberdade, ainda encontram problemas para se encaixar em uma sociedade a qual não se sentem englobados.

Entende-se que a criminologia é a ciência do ser, ou seja, aquela baseada na investigação da realidade, enquanto o Direito Penal enquadra-se na ciência do dever ser, com métodos abstratos e dedutivos de natureza dogmática baseada num direito positivo que liga o fato à uma consequência jurídica. Neste sentido, a teoria criminológica da rotulação[3] entende que a criminalização nem sempre afeta somente aquele que pratica determinado ato contrário à lei, mas também um grupo de pessoas que vive na mesma situação.

No caso de um adolescente, negro, pobre e residente em um bairro periférico de uma grande metrópole que, por estar com fome, rouba um salgadinho no mercado, será rotulado de criminoso toda sua vida pela sociedade, assim como de todos os outros adolescentes, negros e pobres residentes naquela região, não porque roubou o salgadinho, mas porque por trás do processo existe a atuação de um grupo que historicamente age a partir de suas próprias concepções, interesses e preconceitos e atribui o título e a noção de criminoso e marginal a todos aqueles que nascem e vivem uma realidade distinta da sua.

Rotular já era a intenção da doutrina da situação irregular, criada pela elite que comandava o país durante a abolição e aplicada no início do período republicano[4]. O objetivo da doutrina era criminalizar uma parcela específica da população: primeiro os filhos de escravos já nascidos livres e, depois, os pobres que nada mais eram que os mesmos grupos populacionais. Este objetivo se perpetua até hoje, refletido na situação das casas de internação e sistemas prisionais brasileiros, bem como se perpetua a elite, que ainda se assusta quando um(a) negro(a) atravessa seu caminho.

Atualmente estamos vivendo uma pandemia gerada pelo vírus Covid-19, popularmente conhecido como Corona Vírus. A situação está ocasionando inúmeras medidas nacionais e internacionais que sejam capazes de fazer cessar a contaminação, já que o principal problema do vírus é a rapidez com que ele se propaga, gerando lotação nos leitos de hospitais e mortes.

No estado de São Paulo tivemos medidas de isolamento social (quarentena), atribuindo a uma parcela da população a oportunidade – ou privilégio – de trabalhar no modelo ‘home office’. Ocorre que as medidas impostas nesta quarentena estão sendo sancionadas sem o menor resquício de preocupação com a saúde da população desassistida, a qual não tem meios de permanecer em casa, e sequer tem acesso a hospitais de qualidade.

Ou seja, novamente, ao contrário do que foi realizado em outros países[5], negros e pobres estão sendo deixados à própria sorte. A história se repete em um cenário mais moderno, mas com a mesma elite branca no poder. A elite branca que tem acesso a bons hospitais permanece viva e disposta a realizar suas compras online, com seu café entregue pelas padarias locais, sem a preocupação com o que faltará em sua mesa no dia seguinte.

Já aqueles colocados à margem, após 60 (sessenta) dias de isolamento, tendo seus patrimônios e riquezas destruídos pelo trabalho informal e sem qualquer rede de segurança, estes foram, simplesmente, libertados e jogados a própria sorte, sem emprego, plano de saúde e qualquer perspectiva de vida. Novamente, da celebração da ruína dessa população nascera a luta pela vida.

Após 132 (centro e trinta e dois) anos, o fim da escravatura simplesmente marcou, em datas, o início do racismo estruturando, ainda mais, os privilégios da elite branca.

 

São Paulo, 14 de maio de 2020.

GRID ADVOCACIA.

LARISSA MAGALHÃES MORATTO

Larissa Magalhães Moratto Dias, acadêmica do último ano de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, estagiária no escritório Guimarães Pedreira de Freitas.

 

[1] Lei Eusébio de Queiroz, promulgada em 4 de setembro de 1850, visava a proibição do tráfico de escravos. Lei do Ventre Livre, promulgada em 18 de setembro de 1871, pregava a liberdade para os filhos de escravas que nasceram a partir da data em que a lei entrou em vigor. Lei do Sexagenário, promulgada em 28 de setembro de 1885, garantia liberdade aos escravos com 60 (sessenta) anos ou mais, cabendo aos seus proprietários o pagamento de uma indenização.

[2] A Revolução do Haiti começou no dia 14 de agosto de 1791, sendo considerada a maior e mais bem sucedida revolta do povo escravizado no mundo colonial. Esta data marca o momento em que Dutty Boukman, um houngan, sacerdote do Vodou Haitiano, conduziu a cerimonia que convocou o levante do início da Revolução. O Haiti foi marcado por um cenário de grande violência dos franceses contra o povo escravizado. Toda essa violência acarretou, durante o século XVIII, diversas rebeliões nas fazendas, o que estimulou uma revolta generalizada contra os franceses em 1791. Ocorre que, com receio de que a independência ocorresse, os franceses, em 1792, começaram a conceder, o que alguns chamam de direitos, ao povo escravizado e ainda enviaram 6.000 (seis mil) soldados para conter a revolução. Não houve redenção do povo haitiano e no ano de 1794, foi abolida a escravidão na, ainda, colônia. A independência ocorreu em 1804, após a assunção de Jean-Jacques Dessalines ao comando da Revolução.

[3] A teoria da rotulação, também conhecida como teoria do etiquetamento social ou labeling approach, foi criada, pelos estudiosos Erving Goffman e Howard Becker nos Estados Unidos, bem como abordada no livro Outsides, e Howard Becker, o qual conceitua a referida teoria como aquela que é marcada pela ideia de que as noções de crime e criminoso são construídas socialmente. (BECKER, 1991).

[4] O período este marcado por um aumento da população do Rio de Janeiro e de São Paulo, e razão, principalmente, da intensa migração dos escravos recém libertos.

[5] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/03/16/espanha-estatiza-hospitais-privados-para-garantir-atendimento-em-pandemia.htm

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